Conheça a história de Júnia, uma mulher motorista de ônibus de 34 anos, com muita garra e que não deixa o machismo a fazer desistir
Há algum tempo nem sequer pensávamos na possibilidade de mulheres ocuparem alguns espaços na sociedade. Da conquista do direito de voto, do trabalho fora do lar aos dias de hoje com a luta pela igualdade, muitas águas já correram por debaixo da ponte. Não há dúvidas de que representatividade importa e hoje é possível ver mulheres em papéis até então não convencionais para elas [ainda bem]. Se algumas delas “ousam” viajando sozinhas, outras “afrontam” as conduzindo até os seus destinos. Este é o caso da motorista de ônibus Júnia Graciela Pereira Olegário, de 34 anos, cuja história você vai conhecer a seguir.
Durante este mês, a Buser conversou com muitas mulheres inspiradoras para entender melhor a perspectiva feminina sobre ir, vir e ser mulher.
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Um sonho de infância
Júnia era uma menina como qualquer outra, a diferença é que além de bonecas, ela amava caminhões e ônibus. O sonho de ser uma mulher motorista nasceu quando ela ainda era pequena e foi nutrido ao longo da vida. “Quando o meu pai me perguntava se eu queria alguma coisa, algum presente, eu falava: me dá um ônibus, me dá um caminhão. Na idade adulta pude tirar a minha carteira e realizar o meu sonho”.
Apesar de ter sonhos “não convencionais” para uma mulher, Júnia sempre teve apoio dentro de casa e isso foi fundamental para que ela conquistasse o que queria. Quando já estava mais velha, ela decidiu trocar a habilitação. “O meu pai falou: ‘pelo amor de Deus, não faz isso’. Mas eu falei que queria e ele me apoiou. Ele inclusive pagou para mim. Até hoje ele fica preocupado, mas tenho apoio total dele, da minha mãe, da minha irmã e dos meus filhos”, declara.
Contudo, o apoio não veio no casamento. Júnia foi casada duas vezes e nas duas oportunidades ela não teve suporte para a profissão que escolheu no relacionamento. “Eles não me apoiavam. No meu primeiro casamento, quando comecei a mexer com ônibus eu trabalhava só dentro de BH para não viajar, mesmo assim ele não apoiava. Ele falava que era serviço de homem e que não era bom mulher ficar no meio de tanto homem. Mas o casamento já não estava dando muito certo e eu não queria deixar de viver a minha vida. Hoje, graças a Deus, eu faço o que eu gosto”, acrescenta.
O desafio do primeiro emprego
Passar na prova da habilitação não foi difícil, afinal a aprovação veio na primeira tentativa. Difícil mesmo, segundo ela, foi conseguir emprego na área. Foram enviados inúmeros currículos em, aproximadamente, dois anos, mas por não ter experiência, nenhuma empresa mostrava receptividade, afinal, sempre era exigido, pelo menos, seis meses de experiência. Até que uma empresa de ônibus da sua cidade resolveu apostar no seu potencial.
Júnia conseguiu a oportunidade para fazer o teste, mas o dono da empresa deixou claro que ele não costumava contratar mulheres e que nos 14 anos de empresa nunca tinha aprovado sequer uma mulher motorista para trabalhar. Com a inexperiência, ela acreditava que o cenário era difícil, mas não desistiu do sonho e conquistou o emprego.
Após mais de dois anos nessa empresa, Júnia resolveu encarar o desafio de ser caminhoneira e participou de um processo seletivo com mais 68 homens. “Todos eles achavam que eu estava lá buscando emprego em outra área, como na parte de escritório. Ao saber que não, um deles me perguntou se eu sabia que além de ser motorista era preciso ´bater carga´. Lógico que eu sabia”, enfatiza.
Uma motorista respeitada
Júnia trabalhou por dois anos como motorista de ônibus em sua cidade, quatro em caminhão e há quase um ano e meio está em uma empresa de ônibus de fretamento parceira da Buser que faz viagens mais extensas. Hoje ela se considera muito feliz, respeitada pelos colegas de profissão e cada vez mais aceita entre os passageiros [muitas vezes elogiada]. Entretanto, episódios de preconceito ainda são mais comuns do que a gente imagina.
“Tem a história de um senhor que nem ia viajar comigo. Quem ia era a filha dele e ele perguntou: o motorista está onde? Eu disse: eu sou a motorista. Aí ele chamou a filha dele e falou: você sabe que é uma mulher motorista? A filha dele achou ótimo e disse: nossa, você está de parabéns, que diferente! Então ele questionou a filha se mesmo assim ela ia querer viajar e ela respondeu que sim. Ele disse: ainda bem que é você, porque se fosse eu, eu não iria. Eu ainda perguntei a ele: mas só pelo fato de eu ser uma motorista mulher? E ele falou que sim e ainda perguntou: você não está querendo tomar o lugar de homens?”.
Júnia contou que a viagem prosseguiu e a filha deste senhor passou mal. Ela a ajudou e parou o ônibus em uma farmácia para que ela comprasse remédios. Quando chegaram ao destino final, Júnia pediu para ela avisar ao pai de que tinha desembarcado bem. A passageira disse que fazia questão. “Aí ele — o pai — pediu para falar comigo e me pediu desculpa. Eu disse: tudo bem, mas entenda que de hoje para frente na maioria das profissões também vai ter mulher”.
Apesar dos inúmeros episódios de machismo que Júnia já sofreu e ainda sofre, ela não se deixa abater. “Eu tento levar com leveza e não perder a cabeça”.
A dificuldade de ser mãe, avó e motorista
Apesar de sua pouca idade, 34 anos, Júnia tem três filhos e uma neta. Seu filho mais novo ainda inspira mais cuidados, pois tem apenas seis anos. Nesta vida de motorista, muitas vezes ela precisou deixar as crianças doentes em casa ou lidar com a saudade e o sofrimento de estar longe. Tudo isso, segundo ela, só foi possível por contar com o apoio da sua mãe e, também, dos seus filhos.
“Eu me sento com eles, converso sobre o assunto, tento sempre entender o que eles estão sentindo. O meu pequenininho até fala: eu sinto a sua falta, mas eu sei que você precisa trabalhar, né mãe? Eu falo: preciso. Então ele diz: e a senhora gosta, né? Então tá bom”.
Apesar da compreensão dos filhos, Júnia enfrenta o julgamento alheio constantemente. Afinal, em nossa sociedade é comum que homens dediquem-se às suas carreiras, que fiquem pouco em casa e que terceirizem o cuidado dos filhos em suas mulheres ou parentes mais próximos. Contudo, ainda é difícil as pessoas fugirem do estereótipo da mãe que abre mão de tudo para cuidar. “Outro dia um parente falou que eu deixo meu filho muito sozinho, que ele está crescendo e eu não estou acompanhando. Eu falei que o tempo em que eu estou em casa eu tento estar 100% presente e que eu preciso trabalhar por eles”.
A necessidade de se provar todos os dias
Os desafios que Júnia enfrenta diariamente são parecidos com os de muitas outras mulheres que têm profissões pouco convencionais para o gênero. Se para as mulheres já é mais difícil demonstrar suas capacidades e competências, para as que têm profissões singulares é ainda pior. É preciso provar seu potencial o tempo todo.
Apesar de estudos indicarem que mulheres tendem a dirigir melhor, mulheres no volante de um carro já enfrentam as piadas, agora imagine uma mulher motorista de um ônibus?! Não deve ser fácil.
“Ainda existe preconceito, mas já é bem melhor em relação a quando eu comecei. As pessoas estão com a cabeça bem mais aberta e falam mais sobre. Às vezes transporto mulheres que têm profissões que nem eu imaginaria. Já encontrei numa das viagens uma mulher que trabalhava como pedreira e a outra ao lado dela era mestre de obras. Hoje eu estou atrás do volante e nós estamos ocupando cada vez mais lugares e, ainda assim, há quem acha que a gente não dá conta”.
E é isso, as mulheres precisam ocupar cada vez mais espaços até chegar o dia em que uma mulher ao volante de um ônibus vai ser algo tão corriqueiro quanto uma mulher ao volante de um carro, ou uma mulher trabalhando, votando… Todas as mulheres são donas dos seus caminhos e livres para trilharem os espaços que bem entenderem, assim como Júnia, que não desistiu do seu sonho e nem deixou de confiar no seu potencial.